É como se eu fosse duas. É uma sensação inédita para quem,
até então, nunca havia dissociado prazer de trabalho. É como se eu pertencesse a um
mundo diferente daqueles com quem convivo. É como se esse mundo só me fosse
acessível em momentos específicos. O portal é um livro. É um filme. Uma música
que me carrega para outra dimensão. É um estado de alma que raramente se
apresenta. Que me faz sentir um conforto tão grande, uma sensação de pertencimento
tão forte que não tenho vontade de sair de lá. Há alguns anos, me referia a
essa sensação como bolha. Eu me colocava dentro dela e não queria mais sair. “O
Lobo da Estepe” é meu portal neste momento. É como (re)aprender a viver sozinho.
É como (re)conhecer a solidão. É como (re)encontrar uma paz cujo paradeiro eu
desconhecia. Mas (obrigada, Bethânia), tinha que respirar.
Todo dia.
Todo dia.
E me vejo expulsa da bolha por obrigações burguesas que já
não me fazem tanto sentido, mas sem as quais é impossível (me veio primeiro a
palavra “difícil”) viver. É esse paradoxo que me angustia. É querer estar só,
em paz, mas sentir necessidade de gente. É sentir necessidade de gente, mas
desprezar as pessoas. Julgá-las ordinárias. Banais. Comuns. Mornas. Assim como
o Lobo, o morno não me interessa. Eu gosto de extremos. Não me interessam a política, a economia, as guerras. Me encantam as
profundidades. As injustiças. O feio. A sombra. A dor. Dos outros. Outro paradoxo. Me encantam sombras e dúvidas alheias, embora eu desconheça uma maneira indolor de
lidar com as minhas próprias. Porque penso que gosto de extremos, mas lido mal
com a angústia e a dor. As minhas. Sufoco minhas dúvidas, é inaceitável senti-las.
Sinto de estar quieta e só. Na bolha. Mas a vida prática não
para de acontecer. E ela acontece porque eu coloquei a engrenagem para
funcionar assim. Não me foi imposto. Foi escolha. Então, o pequeno sabotador
que atormenta a minha alma grita para parar. Grita insuportavelmente. Mas não
foi você que quis acelerar? Não foi você que decidiu enfrentar o pequeno
sabotador, pisar fundo, ganhar velocidade e passar com a sua vida por cima da
cabeça dele? De onde vem esse grito? Não foi você que julgou que a vida dessa
maneira alimentaria a sua alma e estraçalharia a cabeça do sabotador? De onde
vem esse grito? Por que faz tanto eco? Não era essa velocidade que acalentaria
a sua alma e calaria o pequeno sabotador? Quem é que grita tanto? É como se eu
não pertencesse a nenhum desses lugares.
Onde foi que guardei o maldito manual
de como lidar com paradoxos?